
Na origem desta proposta, encontra-se uma investigação acerca da memória e, sobretudo, uma interrogação sobre a fotografia contemporânea em sua dupla vocação: ora vinculada à função documental, ora inscrita no território da arte. Esse duplo estatuto conduz a série a uma zona liminar, na qual o gesto de registrar não se reduz ao testemunho objetivo, mas se abre a narrativas sensíveis, poéticas e imaginárias. O motivo central — troncos mortos que permanecem como sobras vegetais incrustadas no substrato da paisagem urbana —, torna-se metáfora da própria tensão entre permanência e desaparecimento, lembrança e esquecimento, arquivo e ruína. Ao emergirem diante de nós, esses fragmentos silenciosos interrompem o fluxo da cidade, ao convocar o olhar pelo qual somos convidados a reconfigurar a nossa percepção do banal.
No (re)corte sistemático da paisagem urbana, na segmentação visual como método de amostragem ou ainda na coleta de vestígios, entrevemos uma dupla dinâmica: de um lado, a ânsia de não perder nada, de indexar o que ainda pode ser registrado; de outro, a vontade de conceder às imagens uma autonomia própria, permitindo que se contem a si mesmas. O enquadramento fotográfico aproxima-se, assim, da lógica de um canteiro de obras ou de uma escavação arqueológica a céu aberto, onde cada detalhe é um indício, um vestígio de histórias soterradas. Como numa arqueologia da superfície, os restos se apresentam como rastros de um tempo suspenso, convocando tanto o rigor científico quanto a abertura imaginativa.
Se existe aqui a inspiração de um inventário — acumular instantâneos de uma paisagem destinada à transformação e ao desaparecimento —, o resultado ultrapassa o rigor do arquivo documental. O que emerge é um mosaico sensível, uma constelação de fragmentos que cristaliza o presente em sua precariedade. Trata-se de capturar o instante furtivo em que a consciência percebe que o que já existe se encaminha para não ser mais. É nesse ponto que a reflexão de Denis Diderot, em seu texto crítico sobre o Salon de 1767, ressoa como horizonte interpretativo: “Caminho entre duas eternidades. De qualquer parte para onde lanço o olhar, os objetos que me rodeiam me anunciam um fim e me resignam àquele que me espera. Que é minha existência efêmera, comparada à deste rochedo que se alui, a deste vale que se cava, desta floresta que flutua, dessas massas suspensas acima de minha cabeça e que se abalam?”
As fotografias não apenas documentam, mas instauram um território de assombro. Os troncos — deformados, retorcidos, em decomposição — tornam-se espectros que se impõem no cotidiano dos transeuntes. Assombram não pela monumentalidade, mas pela vulnerabilidade que expõem: lembram-nos que toda paisagem é transitória, e que em cada gesto de construção já se inscreve o prenúncio da destruição.
A ambição de circunscrever os limites de um bairro em torno de um coração arbitrário — um tronco ressecado, central e solitário — reinventa o percurso dos moradores e reaviva sua relação física e sensível com o espaço. A escolha do preto e branco não é apenas um recurso estético: ela resulta do gesto que intensifica a materialidade da imagem. Os cinzas reverberam como os ecos abafados das vidas que ali se abrigavam. Cada fissura, cada nervura no solo, cada fragmento na superfície opera como inscrição residual, como marca que, em vez de preencher, evidencia a ausência.
Essa marca, enquanto indício ficcional, inscreve-se como falta, como cavidade. É nesse vazio que ecoa a voz de W. G. Sebald, cuja poética da memória ilumina a fragilidade do lembrar, nestes primeiros versos do poema O legado:
“Nossas lembranças são bem similares;
embora capturadas vivas;
numa posição na qual;
acompanham também objetos;
como parte deste vazio.”
Aqui, memória e imagem não se limitam a fixar o passado, mas habitam o hiato, o entre-lugar onde sobreviver significa coexistir com espectros. Cada registro fotográfico carrega consigo não apenas o que resiste, mas também aquilo que já não está mais presente — como se fosse habitado pela ausência originária que o funda.
A poética da errância impregna a série (Entre)corpos, desviando a técnica fotográfica do registro objetivo. O contraste acentuado, os valores sombrios e as tonalidades difusas são marcas de um olhar à deriva, nostálgico, que se deixa guiar pelo acaso dos passos, entre resíduos, hesitações e incertezas. Essa errância não é apenas espacial, mas também temporal: reinscreve no espaço urbano a experiência da deriva e tensiona a linearidade da memória. As imagens encarnam, assim, a ambiguidade de nossa relação com a paisagem — construída para ser destruída, preservada para ser esquecida, lembrada para ser apagada.
Essa circularidade paradoxal encontra eco na célebre metáfora de Jorge Luis Borges: “Durante anos um homem povoa um espaço com imagens, províncias, reinos, montanhas, baías, navios, ilhas, peixes, quartos, instrumentos, estrelas, cavalos e pessoas. Pouco antes de morrer, ele descobre que o paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto.”
Do mesmo modo, a série acumula fragmentos e compõe um mosaico que retorna ao observador. O que vemos, no fundo, é o reflexo de nossa própria errância, a inscrição transitória de nossos corpos no espaço urbano. Entre ruínas e sombras, entre memória e apagamento, o que se revela é a consciência de que toda paisagem é um rosto em mutação — rosto multifacetado, tecido por marcas, restos e lacunas.
Goiânia, 03 de setembro de 2025